TRIBUTO AO FLUMINENSE, NA MEDIAÇÃO
Eu já havia constatado o recurso de invocar o nome do time do coração de alguém como um poderoso meio de me aproximar, com mais segurança e aceitação, dessa pessoa e estabelecer imediatamente, com ela, um forte laço de amizade. Contei esta experiência antes. Não custa repetir agora. Em resumo, é o seguinte: quando meu cachorro era vivo, eu passeava com ele duas vezes ao dia; pela manhã, antes de sair para o trabalho, e à tardinha, quando retornava.
Enfrentava muito protesto de moradores das ruas por onde passava; atribuíam injustamente ao meu cão a existência de trilhas de fezes nas frentes de suas casas, quando, na verdade, os autores eram os vira-latas abandonados, zanzando pelo bairro dia e noite. Não adiantava contestar. Precisavam descarregar a raiva ou alguma frustração e nos escolhiam como alvo, embora todos vissem o meu cuidado de levar o animal pelas proximidades de áreas de capim ou terrenos baldios, para puxá-lo pela coleira, quando demonstrasse mínimos sinais de querer satisfazer necessidades fisiológicas.
Para o período da tarde, encontrei uma solução infalível, para me furtar aos protestos das mulheres, sentadas nas calçadas, ao anoitecer, velho costume ainda em voga nos bairros humildes da velha Manaus. Transferi o passeio para o horário da novela das sete. Era como passear num deserto. Ninguém nas ruas. Até os homens estavam entretidos com a novela.
Pela manhã, porém, fui procurando alternativas de soluções para cada situação específica.
Em relação a um proprietário de uma loja de construção civil, pela frente da qual eu tinha de passar obrigatoriamente, pude verificar o enorme poder do vínculo de solidariedade entre torcedores do mesmo time de futebol.
O homem era uma fera e me surpreendia nas horas mais imprevistas; desenvolveu a obsessão de me recriminar. Eu quase tremia quando o avistava, na esquina, empertigado e olhando fixo em minha direção. Eu não podia cortar caminho e levava o desaforo para casa. Atribuía ao meu cachorro a culpa pela sujeira em frente de seu estabelecimento e pelo cheiro de urina no canto do seu portão de ferro. Uma grande injustiça. A rua era infestada de vira-latas. O meu andava preso à coleira. Sua raiva chegava ao ponto de blindar a si mesmo contra qualquer argumento racional.
Um dia, porém, lá vou eu quando o vejo ordenando cadeiras e mesas em frente a um aparelho de televisão, na calçada da loja. Estava montando um palco para o clássico de logo mais. Eu sabia de seu amor incondicional pelo fluminense. Quando me viu, largou tudo e ficou esperando. Mas eu me antecipei à reação dele, exclamando:
-Nosso timão vai arrebentar hoje!
-Qual o seu time? – perguntou – ainda com a cara amarrada.
-O fluminense, é claro, qual outro poderia ser? Não quero nem saber qual é o adversário – respondi.
Uma aura de felicidade tornou-se visível em seu rosto. Apressou-se em me convidar a assistir ao jogo junto com a torcida organizada do bairro, da qual era presidente; prometeu reservar uma cadeira para mim e não me preocupasse com a cerveja; tudo era por sua conta.
- Mas eu estou com o cachorro – disse eu.
- Se é por isso, fica tranquilo; tenho um lugarzinho para ele ali na varanda; não vai ser incomodado até o final partida.
- Mas ele pode defecar e sujar sua casa – ponderei.
- De forma nenhuma, companheiro; temos pá e vassoura para limpar.
- Vamos combinar o seguinte: vou deixar o cão em casa e retorno.
Ele insistiu muito para eu ficar, me deu um abraço, mas resolvi ir, com a verdadeira intenção de retornar, pois não podia de forma alguma perder a oportunidade de fazer amizade com ele.
Em casa, liguei a televisão, tomei um banho, comi alguma coisa leve, coloquei uma roupa esportiva e, para azar, quando me preparava para sair, o fluminense tomou um gol; em seguida, outro.
Fiquei aguardando a virada; não veio; o time adversário fez mais um gol; o fluminense reagiu, no segundo tempo, meteu dois goles, mas não teve tempo de virar o jogo; o placar foi 3/2 para o adversário.
Não fui mais. Tive medo de ser acusado de pé frio pela torcida inflamada, doida para pegar um bode expiatório. Eu não seria maluco de me infiltrar no meio daquele bando enlouquecido, com o time perdendo.
Ao passar por lá, no dia seguinte, desculpei-me por não ter retornado; aleguei chateação com o primeiro gol. Ele aceitou as desculpas e ficamos conversando; deu-me a posição do time no ranking do campeonato; confiava piamente na grande possibilidade de ganhar dos quatro adversários seguintes e explicou o motivo da derrota naquele jogo. Atribuía a derrota ao fato de o adversário ter jogado com doze em campo: os onze jogadores e o ladrão do juiz.
A partir daí, nunca mais tive problemas de passar em frente de seu estabelecimento. Era até difícil fugir de seu cerco. Tinha de ficar ouvindo seus comentários sobre os programas esportivos das madrugadas e me esforçava para acompanhar as tabelas de jogos, para não cair em contradição. Quando o fluminense perdia, eu evitava passar por lá por alguns dias, mas quando o encontrava, sempre estava otimista e com fé inabalável na vitória no próximo jogo. Num dos nossos últimos encontros, tomei conhecimento de uma sua decisão de foro íntimo e de natureza macabra.
Confiar aquele segredo a mim já era prova de uma amizade incondicional. Era o seguinte: por ocasião de um jogo memorável do seu time, conseguiu o autógrafo de todos os jogadores, numa bandeira. Como ato de última vontade, estava determinado: a bandeira devia ir com ele, na sua última viagem.
Não tive mais dúvidas. O amor por um time, para alguns, é como um sentimento religioso. Vi isso novamente confirmado numa mesa de negociação. Uma empresa foi convocada, a pedido de um sindicato, para discutir descumprimento da Convenção Coletiva de Trabalho.
O proprietário chegou visivelmente irritado; reclamou do horário da reunião, da dificuldade de estacionamento na área e asseverou não querer conversar com o sindicato; a empresa era sua e lá sindicato não mandava não.
Procuramos explicar-lhe a finalidade da Mediação, a possível concessão de prazo para regularização de itens incorretos e nada. Continuava intransigente, a cara amarrada, olhar de rejeição ostensiva.
Uma feliz coincidência reverteu todo esse quadro negativo. O Mediador - como fez com todos com quem se encontrou naquela manha - abriu a reunião fazendo comentários sobre o gol do Fred, seu craque, na noite anterior.
O diretor do sindicato vibrou na hora, balançando os punhos e aclamando o nome do time. O empresário, fluminense doente, esboçou um sorriso triunfante, e entrou a mostrar os pontos fortes e fracos do time; não estava gostando da defesa; o ataque estava bom, mas precisava melhorar; discorreu sobre as muitas viagens, com a família, para assistir aos jogos do tricolor e, por fim, queria saber o motivo da reclamação.
O confronto terminou descambando para um ato de confraternização. O diretor do sindicato abriu mão de alguns itens reclamados e, para os mais graves, sugeriu um prazo para solução, a perder de vista.
Para coroar o encontro com um desfecho espetacular, o Mediador disse conhecer o filho do empresário. Pronto. A festa estava completa. "Meu garoto também é fluminense”- apressou-se em dizer o pai coruja.
Ao final, após a assinatura da ata, todos se cumprimentaram, como verdadeiros irmãos e saíram abraçados da sala, lembrando uns aos outros a data e hora do próximo jogo do time do coração.
Para mim, não restava mais dúvidas. Parece ser regra geral, para o desfecho feliz de uma negociação, a tática de dizer torcer pelo mesmo time do adversário ou declarar conhecer um membro de sua família. Quebra imediatamente a parede de gelo e, sem dúvidas, um deles se apressa em iniciar o diálogo, já sugerindo uma proposta de solução, com toda boa-fé.
Dr. Sagahc.