A DOLOROSA BUSCA DA PERFEIÇÃO
O preposto da empresa chegou muito cedo para a reunião. Perguntei se havia madrugado, e ele explicou o motivo do seu excesso de zelo profissional. Conhecia-se a si mesmo muito bem. Tinha verdadeira obsessão por cumprimento de prazos. Quando recebia uma incumbência daquela natureza - representar a empresa como preposto - perdia o sossego, entrava imediatamente em estado permanente de ansiedade e tensão. Só de pensar em pensar na possibilidade de atrasar um minutinho sequer era motivo de desencadeamento de pânico, com suor frio e até tremor no corpo.
Ao receber a determinação da diretoria da empresa, para comparecer, como representante, na reunião com o sindicato, entrou em parafuso, e não conseguiu mais dormir, por quase uma semana.
A fim de não correr o risco de se dirigir a local errado, havia, num de seus dias de folga do trabalho, comparecido à Superintendência e visitado a sala indicada no expediente do convite. Informou-se a respeito do possível condutor da reunião, viu-o na seção, cumprimentou-o, verificou os meios de acesso ao terceiro
andar, os elevadores e a escada lateral e, assim, teve a tensão aliviada um pouco.
A família, maior vítima de seu comportamento, o aconselhava a abrir o jogo com a empresa, contar esse aspecto de sua natureza, a fim de o pouparem de encargos estressantes. Mas ele não achava conveniente nem oportuno chatear os superiores com problemas pessoais. Não tinha o direito de exigir reconhecimento de suas limitações. Aliás, não se reconhecia com nenhum problema; era apenas excessivamente responsável e isso não constituía defeito nem problema. Segundo ele, a família não estava senão exagerando, quando pedia para não aceitar encargos de alta responsabilidade.
Pelo sim pelo não, mostrava-se, no dia do encontro, bastante ansioso, no corredor da recepção, andando de um lado para outro, consultando frequentemente o relógio, bebendo água sem necessidade e até fumando compulsivamente. Encaminhamo-lo à sala de reuniões. A mesa não estava ainda preparada. Comportava vários objetos jogados ao acaso: livros, papéis, pastas.
Para susto nosso, organizou toda papelada, sem misturar os assuntos, como se já conhecesse a rotina de trabalho. Pegou cada bloco de papel, arrumou-os e os pôs um ao lado do outro, todos milimetricamente nivelados e em distâncias rigorosamente iguais.
Quando vi aquilo, me desconcertei, porque a desarrumação - um tormento para ele - era, para mim, apenas uma desorganização organizada; mentalmente, eu sabia onde estava cada documento. Cuidei de tirá-los de cima da mesa. Ele fez questão de ajudar, pedindo-me licença para ele mesmo organizá-los, no armário.
Parecia feliz e satisfeito com a mesa vazia. Quando a moça da limpeza apareceu, pediu um paninho para limpar a poeira da superfície. Insistiu em limpar. Depois ajeitou as cadeiras, uma ao lado da outra, os pés na linha de divisão de uma carreira de azulejo, no assoalho, para garantir perfeito emparelhamento. Percebeu um leve desnivelamento na mesa de reuniões, em comparação com o centro da sala, e fez um pequeno ajuste, para a direita.
Não sei se foi beber água porque tinha sede ou para aprumar uma toalhinha de papel sobre o bebedouro, onde deixou os copos, em perfeito alinhamento, bem no centro do fundo do garrafão. Na volta ao seu lugar, na mesa, corrigiu a posição de um calendário de parede e posicionou uma caneta bem no centro da mesa. Eu, sinceramente, jamais percebi coisa alguma errada na posição daquele calendário e menos ainda da caneta.
Sentiu-se perturbado pela configuração interna do grande armário, aberto em sua frente, com livros e pastas de tamanhos diferentes emparelhados na mesma prateleira, e perguntou se poderia fechar.
Não foi uma das melhores reuniões. Se eu tivesse oportunidade de conversar com os dirigentes da empresa, pedir-lhes-ia não mais enviar aquele preposto. Percebíamos sua visível perturbação com os papeis e canetas manuseados pelos participantes da mesa redonda. Em plena reunião, preocupou-se em alinhar objetos de pessoas próximas a ele, e até mexeu no processo, em frente ao mediador, aprumando-o um pouquinho para a esquerda.
Num pequeno intervalo para confecção da ata,quando os presentes se levantaram para relaxar um pouco, caminhando pela sala ou indo ao banheiro, ele aproveitou para fazer uma nova arrumação nas cadeiras e um novo pequeno ajuste na posição da mesa, deslocada da posição original pela inquietação dos participantes, com batidas de pernas, solavancos e gestos bruscos.
A julgar pelo seu incômodo, nossa sala devia estar precisando de uma grande arrumação, quer nos grandes quer nos pequenos detalhes. Não o vi tomando café, mas organizou os objetos no local onde é servido, aliás, em cima de um frigobar;deve ter achado aquilo de péssimo mau gosto,embora nada tenha comentado.Posicionou a garrafa no centro de uma peça de alumínio,entre duas fileiras de copos e xícaras,dispostos em ordem determinada pelo tamanho de cada um.Desencostou da parede um lado de um grande sofá azul, conferiu o alinhamento da parede de madeira pré-fabricada e deve ter sofrido muito por não ter podido arrumar os objetos no local de trabalho de nossa única colega - ausente, no momento - Eram fotografias de pessoas e santos pregadas, sem ordem, na parede.Talvez tenha presumido tratar-se de um local muito privativo e o deixou intacto.Ou talvez alguém lhe tenha advertido sobre o risco de mexer ali, naquele espaço tão bem demarcado, na ausência de sua dona.
Enquanto se digitava a Ata da reunião, ele aprumou a mesinha do computador e empurrou um pouquinho para trás a tela do monitor. Recolheu os clipes dispersos, acomodou-os na caixinha própria e a colocou em perfeita simetria com o canto da mesa.
Levou uma eternidade para ler a ata. Conferiu, com minúcia irritante, particularidades dispensáveis e sem relevância. Viu uma vírgula fora do lugar e outra faltando. Enxergou um espaço duplo. Solicitou colocar um "A" com acento de crase depois da palavra "referente", a fim de atender requisito indispensável de regras de regência nominal; por outro lado, mandou suprimir o mesmo acento na frase "visa à fazer", por completa desnecessidade, pois antes de verbo não há crase, ensinou sem cerimônia. Solicitou a correção da hora de início da reunião. De forma geral, registra-se sempre um número redondo; no caso, quatorze horas; exigiu a correção para quatorze horas, vinte minutos e doze segundos. Descobriu erro na configuração do texto. As larguras das margens fugiam do padrão recomendado e em outros aspectos de fonte e alinhamento não atendiam as regras da ABNT.
Dispusemo-nos a corrigir todas as imperfeições, mas houve uma reação generalizada dos demais participantes. Consideravam as observações totalmente descabidas e sem importância. Em vista disso, apressamos a assinatura da ata. Todos se despediram, com verdadeira pressa, menos nosso exterminador de desarrumação
Inconformado com a edição do texto da Ata, disse ficaria bastante feliz se o corrigíssemos. Não havia nenhuma objeção de nossa parte. No entanto, não poderíamos mais apanhar as assinaturas dos já ausentes. Tudo bem, uma cópia corrigida, mesmo sem tais assinaturas, lhe satisfaria.
Fomos ao computador e editamos o texto conforme as medidas e correções sugeridas por ele. Perguntou se não estava incomodando e se lhe seria permitido demorar mais um instante, até arrumar sua pasta. Não, não, não está incomodando em nada – respondi -, mas vou lhe encaminhar a um lugarzinho mais tranqüilo. Lá, ele travou uma luta renhida, por mais de meia hora, com sua papelada, tentando arrumá-la por ordem de tamanho, data e vencimento, cada pacotinho dolorosamente organizado e circundado por uma liga de borracha e depois colocado em divisórias de plástico, por assunto, em sua pasta.
Ao final, despediu-se com um caloroso aperto de mão. Parecia bastante satisfeito; ou, dizendo melhor, parecia realmente envolto numa aura de felicidade.
Dr. Sagahc